Cid estava louco pra casar-se com Ângela, há meses, mas para isso precisariam noivar primeiro. “Porra-louca combina com porra-louca”, pensou Cid, enquanto tomava o café mais ralo do mundo. Só conseguiu prepará-lo depois de raspar farelos de duas latas que tinha na dispensa. “Pra que que tenho duas latas de café se nenhuma delas nunca está cheia”, perguntou a si mesmo. Pouco importava a resposta. Seu pensamento mudou de direção rumo ao pedido de noivado que ele faria à Ângela em poucas horas. Tomou um banho rápido, economizando o sabonete, porque era o último e, caso o pedido fosse aceito, poderia rolar um sexozinho de comemoração e era conveniente ter um sabonete para o banho de depois. Foi trocar-se. Pegou uma calça jeans, surrada pelo constante trajeto entre rua e máquina de lavar, tendo freqüentado mais a rua do que a lavadora, e enfiou uma blusa de algodão pela cabeça. Catou, no canto do cabideiro, um blazer bege não tão surrado quanto o jeans, que ele guardava para ocasiões especiais.
Cid não era um pobretão, mas vivia como um. Tinha algum dinheiro, mas era um desleixado inveterado. Foi morar sozinho depois que a mãe viúva não agüentou suas festinhas com a galera. Mas a mãe, com seu o coração encharcado de piedade e culpa, todo mês lhe dava dinheiro para as contas, somente o suficiente para os vencimentos e nada mais. Mensalmente, ele enrolava sua mãe e usava metade da grana.
Cid estava morrendo de medo da resposta que Ângela poderia lhe dar. Completamente inseguro, começou a fumar em série, acendendo sempre um cigarro na brasa final do anterior. Ganhou a rua rumo à casa de Ângela: uma república a oito quadras da casa dele. Como o café não o alimentara, parou na padaria e pediu um pão com manteiga. Suas mãos, suadas pelo nervosismo, vacilaram deixando o pão cair em seu colo com a manteiga virada para baixo, o que formou uma mancha brilhante na camisa do rapaz. Cid grunhiu de raiva entendendo que aquilo poderia ser sinal de mau agouro. Ficou mais nervoso ainda e, para provar para si mesmo que aquilo não era nada, catou a outra banda e a atirou no chão. “Se o pão cair com a manteiga virada para cima, o azar será desfeito”, torceu Cid. O pão deu duas voltas em torno de si e caiu do jeito que ele queria.
Saiu da padaria suspirando, mesmo tendo sacrificado metade do seu café da manhã, e constatou: “preciso brindar minha sorte”, disse, entrando no boteco da esquina. Decidiu, então, tomar um Dreher. Fez tim tim com a garrafa e de uma golada só matou a dose. A bebida desceu como ferro quente. Subitamente um pensamento estranho lhe deixou ressabiado: “Não posso fazer um pedido de noivado com bafo de conhaque”, pensou, decido a tomar um cafezinho para aliviar o hálito. E por todo o trajeto foi assim: quando via na rua algo que acreditasse trazer azar, buscava outra coisa que pudesse “afastá-lo”. Por exemplo: se visse um gato preto, procurava um gato branco. Ficou nessa loucura supersticiosa pelo caminho inteiro. Toda vez que conseguia rebater o azar, tomava uma dose para “brindar a sorte”, seguida daquele cafezinho para disfarçar o bafo. Fez isso pelo menos mais cinco vezes.
Faltando 10 metros para a portaria da moça, Cid caminhava trocando as pernas e com os dedos em figa, porque acabara de passar perto de uma escada. E mesmo que não houvesse passado por debaixo dela, acreditou que aquilo era o azar se aproximando. Tocou o interfone sentindo o verdadeiro cagaço, chegara “a hora da verdade”. Ouviu um estalido e depois a voz do outro lado, se identificou: “É o Cid”. Subiu no elevador fumando desesperadamente, sem se dar conta de que não era permitido. Ao chegar ao apartamento uma garota lhe atendeu, ela tinha as pernas peludas e cara de pernoite. “A Ângela saiu. Pode esperar no sofá que ela já deve estar de volta”, falou sem nenhuma emoção na voz. Sentou-se e o desespero lhe alcançou à cabeça novamente. Ângela demorava a retornar e Cid roia as unhas com uma voracidade assustadora. Num canto da sala, um espelho convidava o reflexo de Cid para um tete a tete. Aproximou-se e teve a terrível constatação: sua cara era um misto de doidão com trincado. As doses de café e conhaque deixaram sua aparência próxima do assustador, parecia um peixe elétrico fora d’agua, cambaleante e veloz. Imediatamente, uma aflição tomou conta de si. Correu ao banheiro, lavou o rosto, bochechou água com pasta de dente, deu uma mijada. Ouviu a chave girando na porta, era a Ângela. Pôs-se de joelhos e fez o pedido, enrolando a língua. “Quer ser minha noiva?”. Os olhos amáveis de Ângela encontraram os marejados de Cid. Ela levantou-o pelo braço, abraçou-o com força, deu-lhe um beijo ao mesmo tempo em que uma lágrima corria de seus olhos e disse: “Nós já somos noivos, Cid”.