quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Copacabanoir



A redação estava lotada. O editor da local atendeu a mais um entre tantos telefonemas do dia. Noutro lado da linha diziam que uma mulher havia sido jogada de um prédio em Copacabana. O editor não precisou mais que alguns segundos para tomar sua decisão. Correu os olhos pelas mesas cinzas, lotadas de blocos de papel rabiscados à caneta, com homens debruçados em telefones e teclados. Apontou para o novato, que havia sido contratado no dia e terminava de redigir sua matéria, e o mandou ao bairro acompanhado de um fotógrafo.
Eram oito e meia da noite, pingos grossos de chuva estalavam no para-brisa, o carro ganhava o subúrbio rumo à zona sul. Dentro do Rebouças, as luzes ocre preenchiam o carro com o mau agouro. Não havia muita conversa, a noite seria longa, todos sabiam.
Na Rua Beforld Roxo um circo estranho estava montado. A chuva, que já era um toró, espantara a multidão para debaixo das marquises, e como o corpo não podia dar-se ao luxo de proteger-se ficou ali, impávido, exposto feito uma obra de arte contemporânera rabiscada de vermelho. Alíás, além do preto do saco plástico só se via vermelho, o do sangue que envolvia a cabeça da mulher e o do esmalte de suas unhas dos pés. Era uma mulher alta e somente os pés estavam descobertos. Uns pés bonitos.
A perícia não havia chegado. Quem passou o telefonema para a redação o fez antes dela ter caído, já que ninguém mais de imprensa chegara. Do Rio Comprido até Copacabana foram-se 40 minutos ou mais. Na pessoa do novato, só o JB tinha chegado. Ele se aproximou do policial encarregado, um negro com a farda rota e barriga acentuada, que debaixo da marquise só sabia que choveu mulher de um prédio, uma prostituta talvez.
O novato foi direto no porteiro, um paraíba que estava louco para falar o que sabia. Em pouca conversa disse que a moça havia chegado de Brasília há menos de um ano e tinha 20 anos. O porteiro disse que ela estudava e não era prostituta, embora morasse em um prédio infestado delas. O novato perguntou se existia motivo para ela se jogar da janela. Ele respodeu que ultimamente ela parecia triste, desgostosa. O paraíba disse ainda que ela recebia visita de seu pai com frequência.
O corpo estava no limite da calçada com a rua, o novato percebeu que se ela tivesse se jogado teria caído na marquise. Mesmo que tivesse corrido e mergulhado, não atingiria aquela distância, o para-peito era alto. Só poderia ter sido jogada. A perícia chegou e arrombou a porta do quatro e sala do sexto andar. E lá, além de um disco do Legião Urbana partido em pedaços, estava uma carta de suicídio. Havia muitas caixas de anti-depressivo no banheiro reforçando a tese suicida.
O local era decorado por uma porção de porta-retratos. Em sua maioria, fotos de família. Numa delas havia legenda e o novato reparou que o pai da moça era figura constante. Noutra foto, estavam a moça e seu pai com com os rostos colados e copos de champanhe na mão. Os cantos de seus lábios quase se encostavam, parecia foto de casal e não de pai e filha. O novato estranhou, logo pensou que o pai a afastara da família para viver um relacionamento incestuoso com sua filha, que tinha corpo de mulher e rosto de menina. Alguma coisa pode ter dado errado e ele lançara a garota pela janela. Mas os detetives já tinham sacramentado o suicídio e, cansado, o novato preferiu não atacar de detetive. Voltou à redação com a história de um suicídio.
O dia tinha sido estafante. O editor filho-da-puta costumava testar os novatos no primeiro dia, para ver se tinham sangue de barata. Antes de Copacabana, ele mandara o novato para o Méier onde uma tubulaçao de esgoto estourada provocara um chafariz de merda no meio da rua. Chegando na redaçao o ambiente estava à meia luz, era tarde. O editor pediu uma notinha e perguntou: ''E ai, novato! Quem matou ela?''. Sem titubear, repondeu: "Copacabana a matou''.