quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Noivo esperto


Cid estava louco pra casar-se com Ângela, há meses, mas para isso precisariam noivar primeiro. “Porra-louca combina com porra-louca”, pensou Cid, enquanto tomava o café mais ralo do mundo. Só conseguiu prepará-lo depois de raspar farelos de duas latas que tinha na dispensa. “Pra que que tenho duas latas de café se nenhuma delas nunca está cheia”, perguntou a si mesmo. Pouco importava a resposta. Seu pensamento mudou de direção rumo ao pedido de noivado que ele faria à Ângela em poucas horas. Tomou um banho rápido, economizando o sabonete, porque era o último e, caso o pedido fosse aceito, poderia rolar um sexozinho de comemoração e era conveniente ter um sabonete para o banho de depois. Foi trocar-se. Pegou uma calça jeans, surrada pelo constante trajeto entre rua e máquina de lavar, tendo freqüentado mais a rua do que a lavadora, e enfiou uma blusa de algodão pela cabeça. Catou, no canto do cabideiro, um blazer bege não tão surrado quanto o jeans, que ele guardava para ocasiões especiais.
Cid não era um pobretão, mas vivia como um. Tinha algum dinheiro, mas era um desleixado inveterado. Foi morar sozinho depois que a mãe viúva não agüentou suas festinhas com a galera. Mas a mãe, com seu o coração encharcado de piedade e culpa, todo mês lhe dava dinheiro para as contas, somente o suficiente para os vencimentos e nada mais. Mensalmente, ele enrolava sua mãe e usava metade da grana.
Cid estava morrendo de medo da resposta que Ângela poderia lhe dar. Completamente inseguro, começou a fumar em série, acendendo sempre um cigarro na brasa final do anterior. Ganhou a rua rumo à casa de Ângela: uma república a oito quadras da casa dele. Como o café não o alimentara, parou na padaria e pediu um pão com manteiga. Suas mãos, suadas pelo nervosismo, vacilaram deixando o pão cair em seu colo com a manteiga virada para baixo, o que formou uma mancha brilhante na camisa do rapaz. Cid grunhiu de raiva entendendo que aquilo poderia ser sinal de mau agouro. Ficou mais nervoso ainda e, para provar para si mesmo que aquilo não era nada, catou a outra banda e a atirou no chão. “Se o pão cair com a manteiga virada para cima, o azar será desfeito”, torceu Cid. O pão deu duas voltas em torno de si e caiu do jeito que ele queria.
Saiu da padaria suspirando, mesmo tendo sacrificado metade do seu café da manhã, e constatou: “preciso brindar minha sorte”, disse, entrando no boteco da esquina. Decidiu, então, tomar um Dreher. Fez tim tim com a garrafa e de uma golada só matou a dose. A bebida desceu como ferro quente. Subitamente um pensamento estranho lhe deixou ressabiado: “Não posso fazer um pedido de noivado com bafo de conhaque”, pensou, decido a tomar um cafezinho para aliviar o hálito. E por todo o trajeto foi assim: quando via na rua algo que acreditasse trazer azar, buscava outra coisa que pudesse “afastá-lo”. Por exemplo: se visse um gato preto, procurava um gato branco. Ficou nessa loucura supersticiosa pelo caminho inteiro. Toda vez que conseguia rebater o azar, tomava uma dose para “brindar a sorte”, seguida daquele cafezinho para disfarçar o bafo. Fez isso pelo menos mais cinco vezes.
Faltando 10 metros para a portaria da moça, Cid caminhava trocando as pernas e com os dedos em figa, porque acabara de passar perto de uma escada. E mesmo que não houvesse passado por debaixo dela, acreditou que aquilo era o azar se aproximando. Tocou o interfone sentindo o verdadeiro cagaço, chegara “a hora da verdade”. Ouviu um estalido e depois a voz do outro lado, se identificou: “É o Cid”. Subiu no elevador fumando desesperadamente, sem se dar conta de que não era permitido. Ao chegar ao apartamento uma garota lhe atendeu, ela tinha as pernas peludas e cara de pernoite. “A Ângela saiu. Pode esperar no sofá que ela já deve estar de volta”, falou sem nenhuma emoção na voz. Sentou-se e o desespero lhe alcançou à cabeça novamente. Ângela demorava a retornar e Cid roia as unhas com uma voracidade assustadora. Num canto da sala, um espelho convidava o reflexo de Cid para um tete a tete. Aproximou-se e teve a terrível constatação: sua cara era um misto de doidão com trincado. As doses de café e conhaque deixaram sua aparência próxima do assustador, parecia um peixe elétrico fora d’agua, cambaleante e veloz. Imediatamente, uma aflição tomou conta de si. Correu ao banheiro, lavou o rosto, bochechou água com pasta de dente, deu uma mijada. Ouviu a chave girando na porta, era a Ângela. Pôs-se de joelhos e fez o pedido, enrolando a língua. “Quer ser minha noiva?”. Os olhos amáveis de Ângela encontraram os marejados de Cid. Ela levantou-o pelo braço, abraçou-o com força, deu-lhe um beijo ao mesmo tempo em que uma lágrima corria de seus olhos e disse: “Nós já somos noivos, Cid”.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

O gosto pelo torto

Há algum tempo tenho alimentado afeição pelo imperfeito. Confesso que mudei ao longo da vida. Quando era pequeno, por exemplo, só me apaixonava pela menina perfeita, que possuía a beleza higiênica, irretocável. Para mim, o imperfeito é belo. Teve épocas em que cheguei a me interessar pelas gordinhas, tradicionais imperfeitas de corpo. Não me levem a mal mas minha namorada é um exemplo, ainda que diminuto, de como a imperfeição pode ser bela. Ela tem duas pintinhas ao lado da boca. Isso é uma vírgula, um tropeço, um descaminho estético, que para mim é absolutamente lindo, sublime. Sem esse “tropeço” sua beleza não seria completa. Que fique claro que as imperfeições, no âmbito estético, são deslizes e não aberrações como pintas peludas e dentes acavalados.
O fato é que as imperfeições são o sal do mundo. Imagine o tédio de uma cidade sem defeitos, feito casa de obsessivo por arrumação ou limpeza. Nenhuma almofada fora do lugar, nenhum pelo de cachorro voando impunemente, a cor da louça combinando com a da cortina. É simplista, admito. Mas imagine o que seria do rico se não houvesse o pobre, do Eu se não houvesse o outro.
Engraçado, pode parecer forçação de barra ou até loucura da minha parte, mas essa antítese entre perfeito e imperfeito está entranhada na disputa entre os candidatos à Prefeitura do Rio. De um lado está o Eduardo Paes. O que desde o começo esteve à frente na disputa, o que “conhece o Rio”, que tem “experiência e competência administrativa”, um político de centro, o preferido dos certinhos, o perfeito. Do outro, está o Gabeira. O azarão, o “seqüestrador subversivo”, o afeminado de tanguinha que defende a maconha, o de esquerda, o imperfeito. Na realidade, ele é o perfeito imperfeito. Não sei se já mencionei, mas há algum tempo tenho alimentado afeição pelo imperfeito. Quem pensa igual, digita 43 e confirma.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Psicologia


Certo dia estava discutindo sobre psicologia com um senhor amigo. No alto de seus 60 anos ele dizia que de nada servia a psicologia nem os psicólogos. Que para resolver angústias internas basta tomar um porre e desabafar com um amigo. Feito isso, suas frustrações iam embora sem deixar rastro. Eu discordo completamente. Não dá para desprezar a ciência. Pessoas dedicam cinco anos de estudo para compreender a mente e o comportamento humano. O homem não é tão auto-suficiente assim.
Existem problemas que, de tão embaraçosos que são, não são contados para ninguém, nem mesmo para seu cachorro e muito menos para aquele seu amigo fiel. Creio que o psicólogo não resolva problemas, mas ele mostra os caminhos, indica as trilhas para encararmos o que nos atordoa. O psicólogo é um andarilho solitário que vaga pelo deserto sinuoso e obscuro que é o cérebro humano.
Um velho calejado que anda apoiado num cajado, e, munido de lupa de precisão, é capaz de investigar as cavernas mais profundas, as vielas mais estreitas, capaz de chafurdar o inconsciente e buscar pistas relevantes em lugares nunca dantes habitados. Nada fica para trás. Tudo é minuciosamente estudado, como um restaurador de peças de arte. Ele é um ermitão da mente humana.
Acredito que a personalidade é uma casa que a pessoa constrói, sozinha, ao longo de toda sua vida. Nenhuma outra casa é construída por apenas uma pessoa, somente no cérebro isso ocorre. É devido a essa dificuldade que certas pessoas preferem construir casas de madeira e não de tijolo.
O psicólogo é uma espécie de mestre de obras que auxilia as pessoas a tocar essa obra tão penosa. Ele indica em qual cômodo está faltando chão, aonde precisa consertar o teto, quais portas devem ser abertas e quais janelas devem ser fechadas.
Tem coisas na vida que são exteriores a nós, nos pegam de surpresa e nos impedem de continuar a obra com serenidade. "Só o autoconhecimento expulsa os demônios das pessoas" (acho já li frase semelhante em algum muro da cidade). Bom, para quem acha que, pouco a pouco, está sendo dominado pela loucura ou que sua obra está preste a desmoronar, porque não recorrer a ajuda dessa ciência tão fascinante? Conheço uns psicólogos bem baratinhos. E vocês, o que acham dessa ciência?

* texto publicado em 5 de julho de 2007 no www.sobrecasaca.blogspot.com – um blog que divido com amigos. Visitem.