quarta-feira, 2 de julho de 2008

Lembranças de um grande escritor


Era um senhor avançado que escrevia seu último romance. Todos aguardavam o livro de um dos maiores ícones vivos da literatura brasileira. A idade lhe impõe numa dura batalha contra a máquina de escrever – diz ser um “escravo da literatura”. A doença que enrijece suas juntas o obriga a fazer um esforço tremendo para premer as teclas negras da antiga máquina. Laudas são cuspidas com imensa sofreguidão. Talvez por isso que seu ultimo romance seja carregado de sentimentos. Tive a grande oportunidade de tê-lo como mentor. Estudei com afinco todas suas publicações e conheço profundamente seus personagens. Sei das angústias de cada um deles, seus sonhos e agruras.
Numa conversa que tivemos, confessou-me num tom grave que não agüentava mais as madrugadas perdidas com o lento parto do livro, acompanhado de uísque e maços de Malboro. Tínhamos uma relação de amizade e por algumas vezes pude, em silêncio sepulcral, assistí-lo criar histórias madrugada adentro. Enquanto digitava, movia os lábios e ria das próprias idéias. Eu o tinha como um avô. Sua senhora, zelando pela saúde do marido, volta e meia escondia os cigarros e a bebida. Nessas ocasiões nenhuma tinta tocava o papel.
A obra caminhava para o final e seu corpo dava sinais de convalescência. A cabeça, muito lúcida e audaz, funcionava, mas o restante perdeu-se no tempo. Desde o início de sua criação, há três anos, o livro o levou ao hospital uma vez a cada ano, e, mesmo de lá, aquele ancião resignado, escrevia as laudas à caneta e entregava-me para que as redigisse à maquina. O medo da não conclusão do livro o corrompia e certa feita o vi chorar, poucos o viram. Num ensolarado de julho a brisa da Baía de Guanabara refrescava o Flamengo. Nesse dia ele não acordou para o café. E na cama, onde por décadas aconchegou-se junto à mulher, dormiu a eternidade. O obituário anunciava a morte de um dos maiores escritores do Brasil. Os jornais carregavam nas tintas sensacionalistas sobre o lançamento de seu último livro. Uns especulavam que ele não seria lançado , outros diziam o contrário.
Em segredo, sua esposa me propôs algo muito estranho, uma idéia insólita. Pediu-me que escrevesse as laudas finais do romance interrompido. A opção pela minha pessoa foi porque me consideram o melhor escritor de minha geração e também o que mais se debruçou sobre suas obras. Ela reforçou que não contasse a ninguém e que lançaríamos o livro como se o próprio falecido o tivesse concluído – era um desejo dele, revelou-me a viúva. Passei um ano buscando o melhor final, pensei em desistir inúmeras vezes. Para entrar em sua atmosfera, eu, que não gosto de uísque (prefiro um chope) e detesto cigarro, passei madrugadas atrás de madrugadas escrevendo a seu modo. No início sentia nausea ao adotar suas práticas, depois me acostumei.
Enfim, consegui terminar e as pessoas foram vorazes às lojas. Em pouco tempo tivemos que rodar as segunda e terceira edições. O mais respeitado crítico literário da praça e também amigo íntimo de meu mentor escreveu crítica de página inteira no jornal. No texto dizia: “sem dúvida não foi sua melhor publicação em termos de enredo, mas com toda a certeza foi o melhor final que meus cansados olhos já leram”. Apesar do imenso orgulho, mantive segredo, até agora. “O que ganhei com tudo isso?”, ainda inquiro-me. O vício do cigarro e do uísque e a lembrança de um grande escritor.

4 comentários:

Anônimo disse...

bem vindo, querido bloggeiro.
beleza de conto!

Anônimo disse...

Que delícia de texto, vá em frente.

Iara Scherer - Psicóloga Clínica disse...

Não bebo uísque, a não ser que seja com guaraná, para horror dos apreciadores do malte...

Fumo, sim, Malboro Light...

Entretanto, jamais poderei escrever com sua propriedade...

Mesmo assim, ouso perguntar:

-Haverá lugar em seu coração e em suas palavras para mim também?...

Bjs

Música e Patchwork disse...

Meu sobrinho, vc é um gênio!!!!!!!!
bjos